Hoje eu acordei
lembrando daquele tempo
em que as coisas
não contextualizadas
à luz da realidade objetiva
produziam-me sofrimento.
Aquele modo de sentir
determinadas situações,
afetaram-me de tal maneira,
que os meus pensamentos eram filtrados
por um pseudo censor instalado no cérebro
para que a matéria censurada
não gerasse nenhuma ação prejudicial a minha saúde,
mas mesmo assim...
Eu vivi àquela época
uma paixão platônica
de proporções doentias.
Não conseguindo administrar
aquele amor unilateral,
fui buscar ajuda na ciência.
A partir da segunda sessão,
comecei a pôr em xeque
a sanidade do meu psicólogo,
devido a insistência obsessiva
da repetição das perguntas.
Para contrapô-lo, eu repetia a mesma arenga:
Doutor, quando ela desce do ônibus
na rua sete de setembro,
eu a espero, escondido atrás da estátua do general.
Depois que ela anda uns cem metros
eu a sigo ansioso.
Na esquina da Rua da Praia com a Uruguai,
ela reduz consideravelmente a velocidade dos passos,
quase parando, e eu, afobado, às vezes a ultrapasso,
mas ela nunca me vê,
alias, ela nunca olha para nenhum lado, olha só para a frente.
Cheguei a pensar que ela fosse cega.
Nos dias em que usa minissaia, ela faz o percurso
da Praça da Alfândega até a Galeria Chaves
andando muito rápido.
Nesses dias eu quase corro para não perdê-la de vista.
Parece que a linda sabe que eu a sigo,
porque quando ela sai da calçada para entrar no prédio,
fica parada, com os olhos fixos no fundo da galeria,
até eu passar por aquele ponto.
Eu percebi que ela não é cega
quando a vi numa tarde
fazendo o trajeto da volta.
Quase não acreditei na mudança comportamental
que a tarde opera na psique da menina.
Doutor, ela era outra pessoa: gazela saltitante,
observando tudo à sua volta..
De repente o professor falou que necessitava de algumas fotos da menina
para prosseguir com o meu tratamento.
Obter o retrato da minha musa, de manhã, foi moleza;
postei-me na frente dela e clic.
Já na parte da tarde foi outra história;
bastava eu me aproximar com a Polaroid na mão
e ela escamoteava, virava de costa,
ficava na frente dos outros pedestres...
Minha insistência foi premiada numa tarde de vendaval,
no momento em que ela pôs as mãos sobre os joelhos
para evitar que a ventania jogasse o vestido sobre a cabeça,
aproveitei a oportunidade e clic...
Quando levei as fotos ao psicólogo,
recebi uma bofetada de pata de elefante
na cara, ao ouvir:
essas meninas são minhas filhas.
A que tu segues pela manhã é psicóloga.
É uma pessoa arguta, muito compenetrada.
No momento, ela recolhe material para escrever um livro
sobre o comportamento dos tarados.
Já a que tu vês à tarde é cineasta.
Ela é mais dinâmica, descontraída, eclética.
Atualmente ela observa os vadios e desocupados da cidade,
pois pretende fazer um filme sobre o tema...
Deixei o mestre falando sozinho,
nunca mais voltei lá.
Larguei aquela gente de mão.